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Suspensão

É preciso aceitar que, por vezes, o único jeito de sentir tudo é justamente deixando tudo em suspensão. Há casos em que o caminho consiste em dar impulso para as palavras percorrerem o céu, misturando-se de tal maneira que o único objetivo seja formar coisa nenhuma.

Os ouvidos com ânsias de fala são um veneno para quem encontra-se em estado de emergência de si. Normalmente, as pessoas que se viciam nessa posição são convocadas o tempo inteiro a mensurar seu pulso da alma, certificando-se de que sua situação ainda não chegou ao limite, que seria algo parecido com uma mortificação com o corpo vivo. Algo como não se afetar com o abrir de um livro novo ou com o toque macio do amor que chega.

As narrativas, quando suspensas, tendem a ganhar fôlego. Admitido o fato de que é a pele quem dá significado ao mundo, torna-se impossível acreditar que exista qualquer coisa de previamente posta nesse universo, a não ser todas as possibilidades à disposição.

Como num jogo que nunca acaba, tenho para mim que a única coisa privada, e ainda assim provisoriamente, é o bastidor do verso. Quando finalmente ganha o mundo, passa a ser despossuído, de modo que ganha asas e adquire o estado de suspensão necessário às coisas profundas. Antes de subjetivar-se nas mentes alheias, até assume uma postura aparentemente submissa a quem organizou suas palavras. 

Quanto mais eu escrevo, mais entendo o papel e o poder da enunciação. O desprendimento que a vida pede a quem realmente deseja construir alguma coisa em benefício da beleza e do cuidado. Por isso, só consegue ler de fato quem abdica da posição soberana e obcecada de medir o tempo inteiro o seu cotidiano. Ele é perigoso, pois, ainda que eu não possa garantir, dizem que não tem fundo.

Eu, que defendo os pés aterrados no mais alto dos voos, não poderia concordar com um exagero do ordinário – principalmente sabendo que existe uma chance de nunca encontrar onde repousar as ideias, já que sem fundo. Uma viagem infinita sem propósito é diferente de uma viagem infinita cuja meta seja o deleite do caminho. 

Acho que folhas em branco cumprem bem o papel de infinito. Vejo seu tecido como um suporte a mim que estou sempre à deriva, deliciosamente envolta nas angústias e nos prazeres de uma semântica a ser descoberta. Nunca descubro, e isso é ótimo.

Mantenho-me em suspensão à medida que vou buscando nomear o que ainda não tem nome – menos com a intenção de criar um código e mais com a audácia de autorizar à percepção certos luxos. Encher a boca de uma palavra gostosa, munir a língua de movimentos novos e estranhos. Nada mais me agrada do que notar que alguém foi tocado por um novo sentimento, sobretudo quando ele ainda não está acompanhado de qualquer juízo.

Ah, antes que eu esqueça, gostaria também de mencionar o estado de suspensão das páginas lidas por aí. Poucos sabem, mas eu consigo visualizá-las percorrendo as ruas e sempre encontrando olhares distraídos onde repousar. Certa vez, alguém me disse que fixar os olhos tempo demais em algo é bom para descansar a vista. Hoje, sei que essa teoria está incompleta; na verdade, quando ficamos com o olhar parado em algum lugar por muito tempo é porque, conscientes ou não, fomos capturados por versos em suspensão. As páginas que vejo confirmam minha teoria. Qualquer hora delas, fotografo e mando revelar em forma de olhar distraído, que terá como vantagem e desvantagem a impermanência. Poesia.

Um cheiro.

Thiane Ávila.

Thiane Ávila

Escritora

Thiane Ávila

Escritora

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