Olhar para dentro requer prática. Quando nos ambientamos demais, corremos o risco de perder as entrelinhas possíveis apenas aos olhos desacostumados, aqueles recém chegados, que ainda vão deslizando nos detalhes, tateando as texturas para ensaiar qualquer coisa que possa acionar o familiar.
Gosto de pensar que as lembranças são mosaicos espontâneos, orientados pelas necessidades de nossas demandas psíquicas e corporais. Naturalmente, há um repertório que nos contorna minimamente e nos faz supostamente consolidados em uma identidade. O fato é que eu receio por ela.
Quando criança, a busca pelo improvável é o motor dos dias. Um exímio talento para lidar com cenários indizíveis atua como nosso diferencial logo na estreia da vida. Por que nos esforçamos para abafá-lo? Perdi o capítulo da história onde o valor da coragem e do risco em benefício dos sonhos se perdeu. Em seu lugar, outras linhas descritivas parecem ter sido colocadas, sentenciando a segurança a um posto que, a rigor, tem mais a ver com tédio e comodismo.
Agora, empenhados em afirmar uma identidade, vamos evitando os banhos de chuva, os testes sensoriais frente ao desconhecido, o arrepio dos pelos ao experimentar novos prazeres. Será que a nova missão é subjugar as lembranças futuras a meras reproduções superficiais de um universo reprimido? Quando observo os comportamentos, vejo uma obsessão coletiva direcionada ao desprazer, mesmo que as narrativas em torno deles defenda o contrário.
Como modo de reivindicar, para o futuro, as recordações, é preciso criar um projeto de presença que dê conta de uma vida cujo sangue de fato percorra nossas entranhas. Subverter as normas do prazer ao retirar das telas o gozo e permitir que ele volte a ser sentido na pele, nos olhos, nas mucosas e nos pensamentos. Revirar as próprias certezas para bagunçar as prateleiras de verdades estabelecidas demais, criando espaços vazios para a reacomodação daquilo que fica e para a chegada do novo que anseia por entrar.
Também é preciso admitir que recordar não significa reproduzir histórias, mas recontá-las sempre e mais uma vez. Uma lembrança carrega todos os tempos consigo e, por isso, não é possível abdicar do protagonismo das emoções evocadas e de todas as sensações imediatamente renascidas ou inauguradas com o conteúdo que retorna. Tenho convicção de que é preciso coragem para deixar de ser tudo o que lembramos que somos. O desapego à lembrança também é um passo para recriar as memórias – que nada tem a ver com torná-las falsas, mas sim atualizadas.
Embora eu ainda não tenha respostas sobre como vamos superar a ideia de que é preciso escolher certos aspectos identitários e viver uma vida endossando sua supremacia aos olhos de quem nos vê, sei que seus efeitos seguirão adoecendo corpos e espíritos. Ao invés de reforçar traços para garantir uma falsa segurança sobre si e um falso lugar no mundo, por que não começar a trabalhar nas futuras recordações? Esse é só mais um convite para que o empenho com o presente seja mais importante do que qualquer compromisso inviável e sem sentido que tenhamos assumido com nós mesmos, acreditando, com isso, que alguém se importa.
Um cheiro.
Thiane Ávila.






