Há muitas pessoas empenhadas em comprovar sua coerência, em desenvolver táticas demonstráveis de razoabilidade. Há enquadramentos já bastante desenvolvidos para sermos aceitos como sujeitos decididos e racionalmente preparados para a vida, com parâmetros bem estabelecidos de como contribuir para a sociedade e como ser civilizadamente agradável.
No geral, incorporamos bem as normas e desempenhamos os papeis da forma como nos encapsulam. Destacamos os valores que devem ser destacados e endeusamos os deuses historicamente colocados no altar. Se realmente nos esforçarmos, desviaremos pouco do esperado e saberemos como reagir caso nos equivoquemos em alguma coisa perceptível. Hoje há também uma lista de argumentos à disposição para legitimar pequenos lapsos de fraqueza – desde que sejam passageiros, é claro.
Todas essas diretrizes, no entanto, são mentirosas. Se fosse possível abrir nossos corpos para enxergar nossas verdadeiras emoções e sentimentos, seria possível vislumbrar o oceano de contradições que nos habita. A coexistência do amor e do ódio pelas mesmas pessoas, da raiva e da insatisfação mediante coisas fúteis da vida. Daria para ver em letras garrafais discursos ofensivos escritos com endereçamentos diversos, assim como sentimentos embalados a vácuo por não conseguirem sair direito pela boca. Uma inabilidade concreta de articular em palavras o que pulsa no peito.
Por essas e outras, levanto a poética bandeira da contradição. A literal defesa dos paradoxos. O verdadeiro alarme que ressoa a impossibilidade de não sermos desviantes e desviados. Nos deformamos pelas experiências e, por tropeçarmos nelas, as modificamos para sempre. Somos responsáveis e vítimas, amantes e amados, inescrupulosos e empáticos. Incapazes de ouvir o que o outro tem a dizer sem elaborar respostas ou sem querer reagir tão logo haja oportunidade. Analfabetos afetivos quando algo inesperado se desenterra do peito, mostrando que toda a nossa postura de bem resolvidos é tão frágil quanto um castelo de areia tomado pelas ondas.
O jeito de não render-se à arrogância de achar-se plenamente justo ou correto ou coerente é abrir espaço para contradizer-se. Liberar os gestos inexplicáveis que direcionamos ao mundo e às pessoas, agindo com delicadeza quando notarmos nosso potencial violento, nossas armadilhas emocionais. Quando o peito estiver abafado demais, respirar. Quando as mãos estiverem cerradas demais, soltar. Se, na vida, precisamos de gestos opostos para curar ou amenizar nossos sintomas, por que insistimos em não admitir que é só pelo contraste que conseguimos crescer?






