Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors
Generic selectors
Exact matches only
Search in title
Search in content
Post Type Selectors

Improviso

Há um certo atrativo inédito na arte de improvisar. Àqueles que, assim como eu, estão esgotados das performances do mundo, diverte a chance de esbarrar em almas descomprometidas com qualquer impressão, dadas a ver única e exclusivamente por meio da falta de limites que a improvisação demarca. Os borramentos lógicos que qualquer falta de pretensão exaspera tende a ser um antídoto livre de erros frente à mesmice da vida e de seus episódios fadados à repetição.

Li em algum lugar certa vez que as repetições, ao contrário do que dizem, não se tratam de oportunidades de perceber padrões, mas sim de viver de forma diferente o mesmo. Para variar, prefiro acreditar que, de fato, o universo conceda a todos nós, meros mortais, a chance de contarmos com um pouco de familiaridade nos acontecimentos, ao mesmo tempo em que, com o improviso, possamos extrapolar a atmosfera outrora criada. O modo como se escolhe realizar fica por conta do sujeito. 

Creio que, na maior parte do tempo, a maioria das pessoas sinta-se cansada. Os motivos podem ser observados a partir dos efeitos somáticos, das prescrições medicamentosas, dos humores duvidosos. Minha hipótese é de que algo generalizado, da ordem de um vírus fatal, tenha irremediavelmente entrado nas correntes sanguíneas, tornando-se mais ou menos potente, a depender do número de repetições a que cada um já foi submetido na vida. Não acho que se trate de pura matemática, mas o peso que o tempo tem sobre a relevância das circunstâncias de tédio, sobretudo se repetidas, é inegável.

Dessa forma, sigo perseguindo as improvisações como forma de sobrevivência. As telas por onde passam as imagens das vidas alheias me soam interessantes à medida que falham, que se reinventam, que se mostram propensas à queda e ao resgate. Se eu não acreditasse no resgate, já não estaria mais aqui. Tudo o que resta daquilo que não observamos torna-se resíduo do mundo; então, a rigor, tudo, em algum momento, passa a ser intragável. Por conta de um otimismo universal, há também sempre a teimosia do nascimento e, só por isso, algo sempre segue de pé, insistindo. 

Nesses dias em que acordo propensa a apreciar o improviso, noto, ao mesmo tempo, que o cansaço geral nos conta sobre as irrelevâncias. Os pequenos desprazeres naturalizados, levados a cabo pelo semblante normativo de algo que já perdeu a origem. As coisas sobre as quais ninguém sabe contar ao certo são as mais poderosas quando se tem por objetivo a perpetuação. O mito é, por excelência, a narrativa desgastada que funciona como cortina da realidade. Sem contestação e legitimidade atemporal.

Não quero, no entanto, me alongar demais nas confabulações filosóficas que logo entrariam nos preâmbulos de conceitos como verdade e seus correlatos. Nunca me preocupei com a verdade das cenas dadas a ver, e agora entendo que muito disso tem a ver com minha queda pelos improvisos. Apesar de eu evitar ao máximo as especulações alheias, tenho me interessado pelo requinte dos desvios às interdições mais enraizadas, que nada têm a ver com desonestidade. Pelo contrário, o encontro favorecido pelas curvas parece ser o lugar apropriado à formação de ilhas de sossego, que fornecem amostras de um silêncio raro em vidas comuns.

Thiane Ávila

Escritora

Thiane Ávila

Escritora

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Posts relacionados