De braços abertos e olhos às vezes cerrados, ele vem manifestando o equilíbrio entre o consolidado e o vir a ser. O papel do cotidiano, a meu ver, é iluminar os poços parados dos pensamentos, trazendo presença a quem está atento o suficiente para não mergulhar nos próprios abismos.
Se distraídos, tendemos ao ato antropofágico do mundo, que nos engole e nos mastiga como quem deseja que os restos sejam todos absorvidos, sem chance de filosofia ou pausa. Há bastante tempo, mudei minha relação com o ordinário. As vistas das horas que antecedem coisa nenhuma podem ser deslumbrantes, basta que deixemos os olhos treinados e o tempo menos fechado nos minutos e mais aberto para as surpresas.
Lembrete mental: garantir minutos suficientes entre um compromisso e outro, de modo que seja possível respirar pelo menos dez vezes de maneira profunda. Não li isso em lugar nenhum, mas essa conta parece que abre mais espaço no peito da gente, possibilitando, nem que seja compulsoriamente, uma pausa que traz notícias do inesperado em nós. Há vezes em que o corpo emana lembranças e, em outras tantas, esquecimentos.
Aprender a receber os ensaios do dia a dia é uma habilidade realmente urgente, ao contrário de todo o resto que, apesar de tratado como se fosse inadiável, é plenamente dispensável. Isento de efeitos colaterais se o tempo dispensado for logo ou mais tarde. Somos imediatistas, e isso tem nos liquidado.
Caso ainda haja dúvidas sobre a importância do cotidiano, sugiro que os desejos sejam submetidos à análise. Tomar nota, registrar sensações – de preferência, as da pele e do olfato. São sempre assertivas e sustentam tudo aquilo que, de pronto, não consegue ser decodificado. É preciso esquecer de querer lembrar para que, no momento certo, a lembrança venha – talvez mais florida, talvez com outras combinações. Somente a entrega ao cotidiano bem vivido pode oportunizar esse tipo de magia.
Para o nosso próprio bem, então, que a porta que recebe as aventuras banais esteja sempre aberta. Por ela, que entrem as sombras e as luzes dignas de marca no dia a dia, permitindo que a sensibilidade grande e pequena reverbere em forma de presença. Sem esperar pelas datas, que as louças bonitas sejam postas à mesa e que a poesia engasgada saia de qualquer jeito, pois verso de verdade também pode ser cuspe, tosse, sussurro. O desapego às formas é um bom começo.
Um cheiro.
Thiane Ávila.






